domingo, 14 de maio de 2023

Carta à Nele Azevedo

                                                                                                                 Diadema, 19/04/2023.


Querida Néle @neleazevedo,

Como vai?

A visita ao seu atelier foi bem impactante para mim assim como para muita gente no mundo como você comentou e como sempre tenho meus momentos reflexivos com o que estou vendo no mestrado; quis compartilhar contigo as imagens que me veio a cabeça pensando no seu ser de sangue.

Aprendi com uma amiga do mestrado, que agora vivo falando que ela é a mulher mais imagética do mundo e com a qual fiz um trabalho, a Carla, que também esteve no seu atelier, a mesclar textos com imagens, então pensando em você, na sua obra, em primeiro lugar me veio à mente a obra do Tunga que está em um de seus pavilhões do Inhotim, aliás quero que você encontre o ponto zigomático entre elas e vou deixar aqui a imagem de 'True Rouge' cujo artista fala muito do pulsar da arte, do nascer da cultura e para mim esta obra me remete a bolhas de sangue.

                 

Uma outra obra que me remete a sua obra da matéria sangue é a 'Desvio para o vermelho I: impregnação' também em Inhotim e que representa o sangue derramado pelo governo militar a tantas vítimas que ainda hoje a família não pode sepultar. Essa obra é pra quem não prefere contos de fadas como eu, aliás tenho total aversão a eles, porque você caminha na sala de móveis totalmente vermelhos e ao fim tem uma imagem de vídeo e uma pia pingando sangue sonoramente. Chocante??? Haha, o Brasil nunca foi um país santo e principalmente na ditadura militar, que muitos negam o quanto muita gente foi morta porque eles quiseram/ como subversivos, até hoje tem gente de teatro na lista de desaparecidos, p. ex. e o cemitério de Perus parcialmente interditado pelas ossadas.

                                       

Tem uma outra obra da Adriana Varejão que me remete a você, mas na contemporaneidade as cartas do século XX são e-mails, não dá tempo de escrever à mão, comprar selo estilizado e quem dirá pegar fila nos correios. Por isso minha carta é virtual, afinal, não existe mais carne e osso ou SANGUE, somos apenas seres virtuais. Aliás, estou numa 'meeting' desde às 8 'a.m' e só tenho 10 minutos para escrever uma carta para ti.

Finalizando… te deixarei uma imagem ‘Colégio de Jesuítas’ de Anita Malfatti e um texto de Cecília Meireles, ‘Prisão’, afinal tudo é rápido: escrever carta/ e-mail rápido e correr para o Mackenzie, almoçar terminando de ler um livro, ufaaa  


Prisão (Cecília Meireles)


Nesta cidade

quatro mulheres estão no cárcere.

Apenas quatro.

Uma na cela que dá para o rio,

outra na cela que dá para o monte,

outra na cela que dá para a igreja

e a última na do cemitério

ali embaixo.

Apenas quatro.

Quarenta mulheres noutra cidade,

quarenta, ao menos,

estão no cárcere.

Dez voltadas para as espumas,

dez para a lua movediça,

dez para pedras sem resposta,

dez para espelhos enganosos.

Em celas de ar, de água, de vidro

estão presas quarenta mulheres,

quarenta ao menos, naquela cidade.

Quatrocentas mulheres

quatrocentas, digo, estão presas:

cem por ódio, cem por amor,

cem por orgulho, cem por desprezo

em celas de ferro, em celas de fogo,

em celas sem ferro nem fogo, somente

de dor e silêncio,

quatrocentas mulheres, numa outra cidade,

quatrocentas, digo, estão presas.

Quatro mil mulheres, no cárcere,

e quatro milhões – e já nem sei a conta,

em cidades que não se dizem,

em lugares que ninguém sabe,

estão presas, estão para sempre

- sem janela e sem esperança,

umas voltadas para o presente,

outras para o passado, e as outras

para o futuro, e o resto – o resto,

sem futuro, passado ou presente,

presas em prisão giratória,

presas em delírio, na sombra,

presas por outros e por si mesmas,

tão presas que ninguém as solta,

e nem o rubro galo do sol

nem a andorinha azul da lua

podem levar qualquer recado

à prisão por onde as mulheres

se convertem em sal e muro.


E ainda correndo a maratona do ser virtual, vou assinar digitalmente, mas "Que nas culturas do próximo milênio as mulheres não sejam silenciadas por causa de seu potencial nem de dar a vida a humanidade, nem em suas inteligências ou diferenças culturais e tão pouco pela única diferença do que é chamado masculino, de órgão sexual".



                                                                                

Abraço Néle Fabi Nascimento.